Porque a justiça deles, só vai em cima de quem usa chinelo/E é vítima, agressão de farda é legítima/Barracos no chão, enquanto chove/Meus heróis também morreram de overdose,/De violência, sob coturnos de quem dita decência/Homens de farda são maus, era do caos,/Frios como halls, engatilha e plau!/Carniceiros ganham prêmios,/Na terra onde bebês, respiram gás lacrimogênio (Dedo na ferida, EMICIDA)
I Introdução
Refletir acerca das relações entre a dogmática penal e a sociedade constitui um árduo desafio, pela transversalidade de variáveis que perpassam uma equação cuja integralização não possui um resultado exato, mas condições de possibilidade, as respostas são tão plurívocas quanto as premissas teóricas a partir das quais os inúmeros desafios são postos à mesa epistêmica, posto que, o Direito Penal e o Processo Penal precisam ser abordados a partir do paradigma democrático que preside o Estado Constitucional de Direito, advindo com a Carta Cidadã de 1988.
Quaisquer reflexões que se pretendam harmônicas ao ordenamento constitucional pátrio, precisam sedimentar-se na axiologia que perpassa os princípios fundamentais (art. 1º a 4º) e direitos e garantias fundamentais (art. 5º a 17º), ainda que em cotejo com esse catálogo progressista de garantias, esteja-se diante de um Código Penal e um Código de Processo Penal não apenas confeccionados consoante o Codice Rocco(1930) do fascismo italiano, mas também fiel à herança autoritária do período colonial e imperial que permaneceram institucionalmente com o advento da República.
Assim, o punitivismo penal corporificado nas opções legislativas orquestradas por Francisco Campos é um punitivismo cujas raízes penetram no solo pedregoso de uma herança da escravidão mal resolvida.
O catálogo de espantos que perpassa nosso sistema penal arcaico dialoga com um colonialismo entranhado na dependência de modelos alienígenas e um patriarcado estamental, que se intersecciona com categorias sociais estudadas por Ângela Davis, mas perfeitamente aplicáveis ao Brasil, a saber: Gênero, raça e classe, pois estas dimensões da opressão tanto explicam um sistema carcerário assemelhado às senzalas, instituições de sequestro (GLOECKNER apud FOUCAULT) afrodiaspóricas, quanto a assertiva que habitara os lábios do velho rábula que afirmara nas arcadas da morada de Têmis, ao ser inquirido por seu abastado cliente, após uma audiência, se este poderia ao final dos atos processuais ser condenado e perder a liberdade:
– Você não será preso, cadeia no Brasil foi feita para preto, pobre e puta!
II Qual sociedade e quais riscos?
O conceito de sociedade de riscos tornara-se conhecido com o advento da célebre obra “ Sociedade de riscos” Ulrik Beck, em meados dos anos 80 do século passado e consiste em célere e inconclusa definição dos mecanismos sociais de administrar os desdobramentos da modernidade.
Com pautas novidadeiras, a exemplo da agenda ecológica e da explosão demográfica, onde a tecnologia e o desdobramento científicos não revestem a sociedade de certezas positivamente incontestes, mas de manifestações da incerteza onde problemáticas recentes envolveriam uma modernidade reflexiva, onde buscar-se-iam soluções na conjuntura social, econômica e política sem circunscrevermos antídotos novos à velhas receitas de boticários senis. Exigir-se-ia o que Edgar Morin denominaria como um pensamento complexo.
Quando pensamos no Direito Penal a partir da ideia de sociedade de riscos, onde os riscos constituem uma categoria epistêmica que pressupõe projetos político-programáticos, inclusive de políticas criminais e penitenciárias, que a partir das incertezas construa condições de respostas às demandas que se apresentam, caberia filosoficamente inquirir de qual sociedade estamos a tratar e a quais riscos estamos a nos referir.
A postulação de Ulrik Beck em escritos posteriores, nos quais advoga um cosmopolitismo ou comunidade cosmopolita, enuncia que soluções pasteurizadas para problemas que fervem no caldeirão da civilização, podem ser um aspecto difícil de adequar às realidades periféricas, onde questões relacionadas ao Direito e Processo Penal precisam revestir-se do que Zaffaroni denominara ‘realismo marginal’ em sua obra “Em busca das penas perdidas”.
Ulrik Beck propõe uma agenda de investigação para a questão dos riscos climáticos e para a criação do que Beck e os seus coautores chamam de comunidades cosmopolitas associadas ao risco climático. (Beck et al., 2013)
A pergunta central é a de saber onde estas comunidades cosmopolitas do risco climático estão a ser imaginadas e concretizadas (Beck et al., 2013, p. 3). Estas comunidades de risco devem ser trabalhadas, sugere Ulrich Beck, como comunidades imaginadas, no sentido proposto originalmente por Benedict Anderson (2012). A ilustração dessa agenda de investigação é feita a partir de estudos empíricos do urbanismo verde, das inovações sobre as baixas emissões de carbono e do ambientalismo de base.
Quaisquer soluções que envolvam cosmopolitismos na esteira de respostas globalizantes à problemáticas particulares, devem ser vistas com a lupa da reflexão, posto que, a compreensão hegeliana de que a história é um continuum, uma linha reta sem descontinuidades, na direção de uma evolução, não apenas perpassa propostas cosmopolitas, a exemplo de expressões como comunidades de nações, famílias humanas e correlatas, que sequestram a singularidade e a diferença (DELEUZE) que se hospedam na pluralidade de experiências sociais.
Antes de refletir acerca do Direito Penal em uma sociedade de riscos, caberia questionarmos a quais riscos e a quais sociedades nos referimos, posto que, o colonialismo põe em lados opostos sociedades escravizadas, à margem dos centros, como a África e a América Latina e os países centrais, cujas consequências coloniais chagam as periferias com desigualdades estruturais enraizadas na historicidade do processo de dominação encetado a partir das grandes navegações e ressignificado ao longo do tempo através do Capitalismo Industrial e Especulativo.
Assim, os riscos da periferia não apenas são assemelhados aos riscos do centro em dimensões pontuais como a agenda climática, mas possuem idiossincrasias como o autoritarismo (GLOECKNER) e a aversão à própria democracia, ademais a tecnologia e seus desdobramentos não pautam os riscos de povos amiúde alheios à tecnologia, que vivendo em condições precárias não possuem acesso aos desenvolvimentos cientifico-tecnológico enunciado por Ulrich Beck, contudo se não tem acesso, ainda assim sofrem por sua de excluídos e marginais.
[...] nossa região latino-americana e seu controle social sãoproduto da transculturação protagonizada, primeiro, pela revolução mercantil e, depois, pela revolução industrial, revoluções que nos incorporaram às suas respectivas civilizações “universais” ou planetárias. É bem evidente, também, que, agora, nos encontramos frente a um terceiro momento - - a revolução tecnocientífica – cujas consequências podem ser tão genocidas quanto as anteriores. (Zaffaroni, 2012.p.65)
Na sociedade de riscos das periferias do capitalismo, os sistemas carcerários são por vezes medievais, a vulnerabilidade social se conjuga à seletividade estrutural por grupos minoritários e o sistema de justiça, assim como o ordenamento jurídico, reproduzem mecanismos de autoritarismo e opressão.
III Respostas marginais para velhos problemas: Entre o risco e a segurança.
Risco e segurança são vocábulos que se relacionam pela antonímia que os envolve. O conceito de segurança foi ressignificado no neoliberalismo para revestir a privatização de uma prerrogativa que deveria ser exercida pelo Estado, a saber: A segurança pública.
Entretanto, a obra de Michele Alexander, “A nova segregação” e o celebrado documentário “A 13ª Emenda”, produzida pela Netflix em 2016 mostram que a privatização do sistema prisional norte americano dinamiza o próprio capitalismo no qual a força de trabalho de detentos sustenta de industrias de moda a cosméticos, beneficiando grupos poderosíssimos que lucram bilhões com o encarceramento em massa.
Da mesma forma a privatização da segurança em conluio com a reverberação midiática de uma insatisfação da população para com a segurança ofertada pelo Estado, circunscrevem a expressão segurança à manutenção de uma visão preconceituosa que as elites burguesas possuem em face de minorias e da própria pobreza, por vezes criminalizada, seja em discursos fascistas à própria postura do aparelho ideológico-opressor do Estado encarnado na polícia.
Os riscos que grassam na América Latina não são os advindos da revolução cientifico-tecnológica que enseja sustentabilidade no desenvolvimento econômico, mas são os riscos que minorias apresentam aos privilégios burgueses, sobretudo com o empoderamento da mulher em uma sociedade cisheteropatriarcal, transfóbica e misógina.
Quem atua em alguma agência do sistema penal em nossa região marginal e, particularmente, quem atua nas agencias reprodutoras de ideologia – isto é, nas universidades – ao reproduzir o discurso de justificação do sistema penal elaboradas por essas agências não pode deixar de detectar a necessidade de enfrentar a deslegitimação, vivenciando-a como uma urgência de caráter ético, uma imposição ou imperativo de consciência, em razão da violência aberta tanto destes sistemas, como do contexto social em que atuam(Zaffaroni, 2012, p.153)
Deslegitimar o sistema penal urge para que a máquina de moer despossuídos não perpetue sua ação nefasta, pois autoritarismo e paradigma democrático não podem coexistir, não obstante comumente experiencias autoritárias quase sempre se revistam com vestes pretensamente democráticas (GLOECKNER).
Ressignificar subversivamente (GLOECKNER apud BUTLER) segurança e risco é refletir das possibilidades de respostas marginais a velhos problemas, ou seja, o paradoxo neo testamentário de colocar ou não vinho novo em odres velhos, posto que vinho novo em odre velho especificamente no Brasil é postular constitucionalizar consoante o paradigma democrático um Direito Penal e Processual Penal autoritário confeccionado em conformidade com o Codice Rocco italiano (GLOECKNER).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As construções teóricas que refletem acerca da sociedade pós contemporânea são férteis, da “sociedade de riscos” de Ulrich Beck à “sociedade do cansaço” de Byung-chul Han, transita-se pela “Sociedade do espetáculo” de Guy Debord ou a sociedade líquida Zygmunt Bauman.
O advento do Século XXI parece ter sepultado em definitivo a ideia de intelectual engajado de Sartre – em que pese os muitos erros que esse engajamento significara, nas escolhas políticas do próprio autor de “O Ser e o Nada” – a postura crítica e transformadora, a partir de um engajamento parecem a cada dia mais necessárias no mundo de pós-verdades, posto que, a assertiva de Karl Marx de que “os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo” ecoa com atualidade, incentivando uma teoria crítica que apresente condições de possibilidade de transformação.
Em relação ao Direito Penal e Processo Penal os caminhos parecem apontar para a deslegitimação do sistema penal erigido sobre pilastras normativas autoritárias e a ressignificação subversiva dos alicerces epistêmicos da normatividade, a partir do paradigma democrático.
Ressignificações decoloniais que nas periferias do capitalismo oportunizem que se fechem as veredas de opróbrio que se abatem sobre o grande sertão das veias abertas da América Latina à África e de todos os territórios e corpos chagados pela vergasta do Imperialismo.
REFERÊNCIAS
file:///C:/Users/okaos/Documents/DELEUZE-G.- Diferenca-e-repeticao1.pdf
http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0003-25732015000100012
GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal [recurso eletrônico]: uma genealogia das ideias. ed. - Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.
https://m.letras.mus.br/emicida/dedo-na-ferida/
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em Busca das Penas Perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 2012
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