Luiz Gaúcho estava sentado na porta de sua casa numa cadeira de macarrão e percebeu que nuvens cinzentas se formavam na direção do nascente, iniciava o mês de janeiro, aquilo era um anúncio auspicioso de que o período das chuvas estava chegando. Coisa boa! Afinal, nos últimos anos ela vinha demorando a chegar. Uma suave brisa agitou a copa das árvores afastando o clima quente. É! O tempo começava mesmo a mudar. De repente aquela alteração de clima lhe despertou sensações agradáveis e a lembrança de tantos acontecimentos que vivera em Itapecuru-Mirim nesses mais de quarenta anos, sobretudo durante sua vida como um dos maiores plantadores de arroz do país.
Luiz Gaúcho era na verdade Luiz Arcangelo Stefanello, um gaúcho que em 1973 havia comprado terras em Itapecuru-Mirim e em 1974 mudara-se definitivamente para o município, para plantar arroz mecanizado. Ele não se importava com o apelido, dizia que Arcangelo é difícil de pronunciar, por ser de origem italiana, acostumara-se com a alcunha e explicava:
- Não posso mais tirar, né?
Sempre que tinha oportunidade, gostava de lembrar que:
- A primeira safra que nós fizemos, plantamos cento e cinquenta hectares de arroz, arroz mecanizado. Dizia, com certa empolgação na voz.
Nessa época ele tinha vinte e oito anos de idade e era migrante de Palmeira das Missões, no Rio Grande do Sul. Quando chegou a Itapecuru costumava passar pelas ruas da cidade em seu automóvel, um conhecido opalacoupê Chevrolet, duas portas, azul. O povo sabia que aquele era o carro do Gaúcho, não havia outro igual.
Respondia sempre quando alguém perguntava sobre sua vinda ao Maranhão:
- O que me motivou a vir ao Maranhão? Primeiro, foi procurar lugares novos. Me informaram muito bem do Maranhão que teria ótimas terras para arroz. Quando cheguei aqui, em Itapecuru, dei uma olhada e tal, fui para Chapadinha, mas não gostei; muito arenosa. Voltei a Itapecuru, fiquei uma semana olhando as terras e adquiri a primeira área de mais ou menos novecentos hectares de terra. Fiz o primeiro plantio que foi muito bem sucedido. Aí fui ficando, fui comprando e tal.
Mas antes de vir para o Maranhão, esteve no Mato Grosso para tentar comprar uma área de terra razoável, todavia não deu certo porque era muito caro.
O Gaúcho continuou a ficar pensativo e envolvido em suas lembranças. Imaginou o que faria se tivesse que voltar no tempo. Teve certeza de que viria novamente ao Maranhão, voltaria a viver em Itapecuru e reviver as famosas festas do arroz que um dia teve a ideia de realizar e sempre ajudou a organizar juntamente com José Ercílio Pereira, Leonidas Amorim Silva, Benedito Laborão, Adolfo Garcia Sobrinho, Bispo Rodrigues, Manyr de Jesus Amorim e Silva, Benedito Lima Mendes (Lacerda), Faltier Frazão, Domingo Rodrigues e Nonatinho Lima. Também com esse grupo fez muitas festas beneficentes, ações que o gratificava muito.
Com o passar dos anos Luiz Gaúcho deixou de plantar arroz, mudou de ramo e passou a fazer o que muitos empresários faziam em Itapecuru: cerâmica.
- Não por que eu goste, mas eu tenho um filho que não quer sair de Itapecuru e ele quis montar uma cerâmica, mas vou levar até o dia que der. Acrescentava.
O filho a quem se referia era Luiz André Amaral Stefanello, popularmente conhecido como Luizinho Gaúcho.
O velho gaúcho lembrava-se ainda de que quando chegara a Itapecuru a cidade era muito pobre, carente de tudo. Só havia um posto de gasolina, um posto médico e poucas escolas. Por conta da saúde da filha, voltou para o Rio Grande do Sul com a primeira mulher e dois filhos para esperar a menina, de nome Cláudia, ganhar mais uma estaturazinha e poder voltar a Itapecuru. Nesse retorno, muitas pessoas amigas o ajudaram nessa nova ambientação de sua família.
Quando morou no Rio Grande do Sul teve duas profissões a tornearia mecânica e uma chácara, nesta aproveitava de trinta e cinco a quarenta hectares de lavoura. Nas horas vagas saia de sua indústria e ia para o campo. Aquilo começou a incentiva-lo a procurar áreas melhores e maiores para fazer agricultura.
Quando veio ao Maranhão já saiu com essa ideia fixa de plantar arroz. Nessa época, inclusive, trouxe do Rio Grande do Sul, sementes de soja, mas essa cultura não era propícia ao solo do município de Itapecuru, porque no período das chuvas, culturalmente chamada de inverno, os campos ficavam alagados e a soja não se adaptava a essa região alagadiça. Fosse o caso, teria que ficar em Chapadinha. Não obstante, não se arrependia de ter ficado em Itapecuru, o tempo só o faria comprovar isso.
Em 1980 foi considerado pelo Ministério da Agricultura como o maior produtor de arroz por hectare como pessoa física no Brasil. Nesse ano ganhou do INCRA o prêmio Produtividade Rural, conferindo-lhe o título de produtor modelo por seu desempenho no setor agropecuário. Recebeu um cheque vultoso. O dinheiro recebido com a premiação deu para comprar um trator, uma gradiadora, uma grade niveladora e uma carreta. Comparando com o Rio Grande do Sul, o maior estado plantador de arroz naquela década, que colhia 3.500kg por hectare, a safra de Luís Gaúcho que chegava a 5.600 kg por hectare era significativamente a maior do Brasil.
O gaúcho foi um dos primeiros a usar maquinário na plantação de arroz no Maranhão, além dele, somente um holandês chamado Phillip, que plantava na região de Balsas. Os dois acabaram sendo os pioneiros no uso de agricultura mecanizada.
Embora Itapecuru tenha sido sempre uma região produtora de arroz, esse ciclo áureo teve o seu apogeu entre as décadas de 70 e 80 do século XX, foram anos de muita abundância desse grão no município. A partir dos anos 90 começou o seu declínio, segundo o Gaúcho, isso ocorreu porque os governos dessa época não deram valor à agricultura. Essa produção de Luiz Gaúcho e de mais alguns proprietários rurais, como Oswaldo Dias Vasconcelos, fazendeiro de Miranda, um dos proprietários da fazenda Tiracanga, chegou a motivar a criação da festa do arroz.
Um pingo d´agua caiu na perna do Gaúcho e aquilo, ao invés de lhe despertar de suas lembranças, acentuou-as ainda mais. Agora ele falava como se falasse com um interlocutor invisível e atento:
- Na minha cidade natal, nós tínhamos a tradição de fazer uma festa de comemoração do aniversário da cidade. Nós fazíamos passeatas de máquina. Eu tive a ideia de convidar a maçonaria e a Lions Clube para fazermos essa festa, fizemos uma comissão e fomos falar com o prefeito para ajudar a gente a divulgar a festa, mas ele não nós deu atenção. Mas eu tinha um bom entrosamento como agricultor no Maranhão, então, fui ao governador do Estado. Ele prontamente nos recebeu e deu incentivo pra nossa festa através da secretaria de agricultura, que deu cartazes para divulgar a festa. Fizemos a primeira festa do arroz em 1983. Enquanto tive na presidência tivemos organizando. Mas depois passou a ter envolvimento político e eu acabei me afastando.
Os pingos da chuva ficaram mais intensos, começava um chuvisco e o Gaúcho levantou-se da cadeira e a levou consigo para dentro de casa. Lembrou-se de que numa gaveta de um móvel da sala de estar havia uma pasta com velhos papeis sobre os fatos que rememorava. A mudança de clima havia despertado o desejo de continuar lidando com essas reminiscências. Pegou a pasta, abriu-a, tirou uma folha de jornal e começou a ler baixinho. Era um texto com uma entrevista que havia dado há algum tempo.
─ Pra você ter uma ideia, nessa época nos tínhamos sete por cento de juros ao ano, o grande produtor. Após isso eu comprei uma fazenda em Vitória do Mearim e fui plantar arroz irrigado. Quando eu encerrei meu ciclo de plantar arroz, eu tive que vender as fazendas pra poder pagar o banco. Onde a gente pagava 2000 por cento de juros ao ano. Era um absurdo, a mercadoria não acompanhava. Só o que era de juros do governo, fora óleo diesel, insumo essas coisas que usamos muito. Então, o grande que não era político não aguentou. Eu fui um deles. Eu tive que terminar parando a produção. E hoje, o que era a minha fazenda, eu vendi a um industrial de Itapecuru e o INCRA desapropriou ele. Naquela época eu tinha mil e oitocentos hectares de reserva florestal, coisa mais linda, só de babaçu. Hoje, você vai lá e não acha mais nada. E além do arroz eu plantava milho e feijão, mas só para subsistência.
Como o tempo havia passado, agora era um homem de setenta e um anos. Não tinha mais o vigor de antes, contudo ainda alimentava sonhos e paixões, como, por exemplo, voltar a plantar arroz, “para morrer em paz”. Sim, morrer em paz! Suspirava. Mas sua segunda esposa não queria. Ela o viu sofrer muito com a lavoura. O Gaúcho respeitava a opinião dela porque ele também sabia que “quem planta sofre”, como costumava dizer, pois não tem hora exata para o trabalho.
Voltou a ler o jornal e viu outro trecho que falava sobre o fim o Lions Club entidade que dirigiu por alguns anos.
─ É uma pergunta meio difícil, mas eu vou tentar explicar. Aquilo que eu falei da história da política. Entrou aqui um cidadão que era da SUCAM, não lembro mais o nome, tentou ser candidato a vereador e um bocado de coisa e foi matando o Lions aos pouquinhos. As festas do arroz acabaram e aquelas ajudas humanitárias que o Lions fazia parou, se acabou. É mais ou menos por aí. Simplesmente deram um fim.
Leu também um trecho que falava sobre as dificuldades que enfrentou como produtor rural quando chegou a Itapecuru Mirim.
─ Mão-de-obra. Existia, mas não sabia nada. Eu sacrifiquei tudinho para ensinar. Além de ensinar, foi quase uma escola.
Ficou com o jornal parado na mão e lembrou de que sempre gostava da lealdade do povo da terra. Tinha até um povoado de Itapecuru que se ele fosse lá e não visitasse a casa de cada morador, seria uma ofensa, parecia um político. Isso o cativava e o fazia entender que havia acertado na sorte grande ao ter vindo morar naquele município.
Voltou a ler o jornal e releu um trecho que dizia:
- Em 1988 fui candidato a vice-prefeito na chapa do Dr. Fernando Wellington Ferreira Costa. Nós perdemos a eleição e depois daquilo não participei mais de política, me decepcionei. Não com os eleitores, mas com a maneira que se fazia política que não é da minha índole, e que continuam fazendo até hoje.
Muita história tinha para contar desse período vivenciado no município de Itapecuru, sobretudo durante os anos que lidou com a fazenda, por exemplo, como uma sobre cobras. Passou a falar baixinho como se tivesse voltando a contar aquela história para alguém:
─ As cascavéis? Tinha muita cobra. Certa vez, eu tava arrumando uma colhetadeira, estava embaixo da máquina. Eu mesmo era o mecânico, era tudo. E chegou o almoço. Eu me sentei na traseira da máquina. Aí o Severino pediu a minha mão e me puxou de vez pra fora. E disse: “Olha o que tava aí em cima do chassi da máquina”. Eu tava sentado bem perto da cabeça da cobra. Por pouco ela não me picou. Coisas que Itapecuru tem demais. Ficou rindo sozinho.
De repente alguém acendeu a luz da sala.
─ Deu agora para rir sozinho? Era sua esposa.
─ Essa chuva me lembrou de histórias do tempo que cheguei aqui a Itapecuru. O arroz, ah o arroz! Como tenho saudade de minhas roças de arroz.
A chuva caía forte lá fora, certamente faria brotar muitas roças de arroz. O arroz, ah o arroz!
Do livro Púcaro Literário I, coletânea de autores itapecuruenses e convidados (2017), pag. 83, texto de autoria do professor Francisco Inaldo Lima Lisboa, membro efetivo da Academia Itapecuruense de Ciências, Letras e Artes.
Texto reproduzido do Blog de Jucey Santana, imortal da Academia Itapecuruense de Ciências, Letras e Artes (AICLA).
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