*Theotonio Fonseca
*Marcela Tavares
"Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça." Provérbio Africano
Um pensador afirmara que não se pode resgatar a história, mas registrá-la. O registro da luta pela promoção dos direitos dos povos tradicionais é perpassado por omissões, silenciamentos e ausências em materiais didáticos, onde as novas gerações poderiam avistar-se com a biografia de quem lhes antecedera nas desafiadoras arenas da luta social.
Com o afã de trazer às novas gerações um capítulo relevante da resistência quilombola pelo direito de ser e existir no município de Itapecuru Mirim, Maranhão, havemos de realizar nas linhas seguintes, o registro do percurso vivencial de um aguerrido líder que devotara sua vida à dignidade dos povos tradicionais: Raimundo Elesbão da Conceição.
Nascido em 1952, filho do Inspetor de Quarteirão Raimundo Pedro da Conceição e da lavradora Patrocínia Belfort da Conceição, neto de Olímpio Pires Belfort, uma pessoa escravizada que vivera no Quilombo Sítio Velho, Território de Santa Rosa dos Pretos, desde tenra idade ouvira de seus pais os relatos dos castigos físicos, tortura e humilhações sofridas por seu avô e outros ancestrais.
Não obstante suas origens estejam no Quilombo Sítio Velho, o homenageado afirmara já ter nascido onde hoje é conhecido como Quilombo Picos II, a propósito do nome de sua comunidade explica:
– Quando eu nasci, ainda não era aplicado esse nome de Picos II. Picos surgiu depois que fizeram essa estrada que atravessou o pico do caminho em cima do nosso, que era a divisão de Santa Rosa dos Pretos com Oiteiro. Aí apelidaram de Picos por causa do caminho que ligava os quilombos.
Pode-se conjecturar que a gênese da luta pelos direitos quilombolas tenha nestes relatos familiares o fator motivacional que sempre instruíra sua atuação política. No início dos anos 1970, ao lado de outros líderes históricos como Libâneo Pires ( Quilombo Santa Rosa dos Pretos), Maurino ( Quilombo Outeiro dos Nogueiras), Benedito Belfort ( Quilombo Santa Rosa dos Pretos), iniciara uma caminhada eivada de desafios contra os latifundiários, que, utilizando-se de poder econômico e valendo-se de jagunços, repetidamente ameaçavam as lideranças dos movimentos sociais de morte.
A luta transcorrera durante a década de 1970. Certa vez, tentaram assassiná-lo ao convidá-lo para um almoço, mas, por um golpe favorável do destino, conseguira livrar-se da armadilha. Ameaças de morte e prisão, perseguições políticas e outros meios intimidatórios não foram o suficiente para emudecer a voz ou paralisar os passos de Raimundo Elesbão.
Ao final dos anos 1980, comemorara a boa nova da desapropriação das terras que sempre pertenceram aos descendentes dos escravizados que há séculos habitavam aquelas plagas. Ademais, o líder quilombola também foi essencial na conquista do direito à terra na comunidade Centro de Águida, onde latifundiários se apropriaram do cemitério da comunidade, obstando até mesmo os ritos fúnebres de sepultamento dos moradores da localidade.
A desapropriação constituíra o coroamento de grandes batalhas. Assegurava o direito à terra, mas impunha o desafio de assegurar que a territorialidade fosse contemplada com políticas públicas que dignificassem a vida do povo quilombola. Nesse sentido, em 1985, após reivindicações do Quilombo Picos II, lideradas por Custódio Belfort e Raimundo Elesbão, o prefeito José Carlos Rodrigues inaugurara a Unidade de Ensino Básico Tancredo Neves. Consigne-se que a primeira alfabetizadora da comunidade foi a Professora Maria das Dores de Araújo Gonçalves.
Com o mesmo empenho incansável dos anos 1980 para garantir a primeira escola no Quilombo Picos II, Elesbão lutou para que, em 2024, fosse iniciada a construção de uma nova escola, prevista para ser inaugurada em 2025, tendo como patrono seu avô, Olímpio Pires Belfort.
Buscando alternativas para melhorar a renda da comunidade, Elesbão introduziu, nos anos 1990, o cultivo do abacaxi, transformando sua comunidade em uma referência no plantio dessa cultura na região. Também tem sido um grande apoiador das expressões da fé de seu povo, doando, em 1998, um terreno para a construção da primeira capela do Quilombo Picos II, que tem Jesus Misericordioso como padroeiro.
Nosso ilustre biografado participou ativamente de manifestações na sede do INCRA em São Luís, Brasília e em protestos como a interdição da BR 135 e do bloqueio da Estrada de Ferro Carajás, operada pela mineradora Vale.
Ao falar sobre companheiros de luta que se ancestralizaram, Elesbão se emociona ao recordar Justo Evangelista da Conceição e sua familiar Anacleta Pires: “Nessa nossa luta, Justo foi um guerreiro que enfrentou muitas dificuldades com a gente. E também Anacleta, que Deus a tenha, lutou até o ultimo dia de vida por esse território, por nosso povo quilombola.”
Registrar o percurso daqueles que palmilharam os tortuosos caminhos da resistência dos povos tradicionais, compõe o repertório de um letramento racial que não se limita aos baluartes do passado, mas revigora-se naqueles que contemporaneamente, lutaram e ainda lutam pela plenitude da cidadania em um país edificado sob as chagas da escravidão.
Raimundo Elesbão é um ancião que, apesar das limitações impostas pela perda progressiva da visão, permanece ativamente engajado no movimento social, reivindicando e articulando políticas públicas para seu território, sobretudo no Quilombo Picos II, onde reside com sua família.
*Theotonio Fonseca é Professor, Poeta e Advogado. Foi Membro Consultivo da Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA e atualmente compõe a Comissão de Advocacia Criminal da OAB/MA.
*Marcela Tavares é Advogada Criminalista, Conselheira Estadual de Direitos Humanos (Representando o Centro de Cultura Negra do Maranhão/CCN), Secretária da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA. Ex Presidente da Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil da OAB/MA e Assessora Jurídica do CCN.